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A seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil tentou de forma truculenta forçar a Defensoria Pública de São Paulo a promover um aumento significativo no repasse de dinheiro público do Fundo de Assistência Judiciária, o que ocasionou o rompimento unilateral do convênio que vinham mantendo há vários anos. Desde 1997 até 2007 houve um aumento de mais de 700 % no montante repassado aos advogados, atingindo o patamar atual de duzentos e setenta e dois milhões no último ano[1]. Uma primeira leitura desses números pode indicar aumento do acesso ao judiciário, mas, uma visão mais atenta, aponta também para o mau uso do dinheiro público. Os honorários pagos pelo convênio não são altos — trata-se de uma contingência de orçamento público — mas os advogados, diferentemente dos defensores públicos, não estão impedidos de trabalhar em outras causas. O Fundo de Assistência Judiciária foi criado na gestão Montoro para aprimorar e ampliar a assistência judiciária gratuita no Estado aos “necessitados”[2] e evitar que os advogados fossem forçados a trabalhar sem remuneração, como ocorria naquela época[3]. A idéia original foi aos poucos subvertida. Formou-se o convênio que se sagrou como uma poderosa fonte da força política da OAB-SP, servindo como significativa fonte de renda os milhares de advogados que não param de se multiplicar a partir de muitas universidades de duvidosa qualidade por todo o Estado. E, de instrumento de defesa de necessitados de toda ordem, o convênio foi se transformando gradativamente em instrumento de defesa de advogados necessitados. Tamanho é o interesse na manutenção do convênio e a força política da seccional paulista da OAB a ponto de ela ter conseguido a aprovação de um artigo na Lei de organização da Defensoria Pública no Estado[4] e outro na Constituição Estadual[5] nesse sentido. Hoje, tais previsões legais servem como os principais argumentos contra o fim do convênio. Mas não é preciso ser um perito em direito contratual para saber que convênio é um acordo bilateral. Exige interesses comuns e coincidentes. Não é razoável que o legislador imponha um acordo, sob pena de tornar uma das partes “escrava” dos interesses da outra. Na medida em que uma delas não está satisfeita e que não há mais coincidência nas vontades, o negócio jurídico deve se extinguir. É o que aconteceu. A Defensoria não tardou a tomar providências para que isso não prejudicasse a continuidade do ameaçado serviço de assistência judiciária e publicou logo edital para cadastrar e nomear diretamente advogados interessados em continuar a trabalhar na assistência judiciária. A rescisão unilateral do convênio por parte do presidente da OAB-SP parecia trazer uma oportunidade para a Defensoria Pública rever o controle sobre o vertiginoso aumento de gastos com o convênio (ressalte-se: verba pública). A terceirização pode trazer inconvenientes. É possível, apenas para dar um exemplo ilustrativo e factível, que uma ação que pudesse ser proposta para beneficiar 100 necessitados, seja hoje substituída por uma centena de peças individuais, uma vez que os advogados conveniados são pagos por ação. Ou ainda, em demandas em que a lei autoriza pedidos múltiplos na mesma petição inicial, que advogados talvez ajuízem ações separadas para aumentar seus ganhos pessoais. Nesses casos, a vítima não é apenas o Fundo de Assistência, mas também o Judiciário que se vê ainda mais atolado em processos, e, principalmente, os jurisdicionados, cujo direito de celeridade processual será lesionado. Não lhe pertencendo o dinheiro, será que a OAB-SP teria o mesmo interesse que a Defensoria Pública em coibir práticas dessa natureza? As torneiras do referido Fundo estão escancaradas e é urgente racionalizar ao máximo a utilização dos recursos. Mas a Justiça Federal parece não compreender os meandros do problema, uma vez que concedeu, em decisão mais legalista do que humanista, liminar em mandado de segurança para determinar o retorno da vigência do convênio para atendimento de carentes nos mesmos moldes anteriores[6]. Uma solução contingencial para o impasse seria a implementação de filtros para racionalizar o ajuizamento de demandas, sem prejudicar os direitos envolvidos. Parece mais recomendável a Defensoria assumir diretamente essa tarefa, enquanto instituição formada por servidores estáveis com vocacionados e treinados para a defesa dos necessitados, cujos fundamentos institucionais, de “construção de uma sociedade livre, justa e solidária” e de “erradicar a pobreza e a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais e regionais”, coincidem com os da própria República Federativa do Brasil. A lógica institucional da OAB é diferente. Veja que hoje, ainda que um advogado pretenda trabalhar gratuitamente em algum processo para proteger caros direitos de pessoa física necessitada sem defensor constituído, tal conduta costuma ser considerada anti-ética pela seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. O argumento é que haveria captação de clientela, o que parece equivaler a uma presunção de má-fé do advogado. Isso, a despeito, muitas vezes, de questões humanitárias e do estado de necessidade do cliente, enquanto o próprio Código de Ética da OAB-SP prevê ser dever do advogado defender a moralidade pública (artigo 2º) e jamais permitir “que o anseio de ganho material sobreleve a finalidade social de seu trabalho” (Preâmbulo). Essa postura serve unicamente para interesses corporativos, em detrimento do direito constitucional de acesso à justiça e do Fundo de Assistência Judiciária, ou seja, de patrimônio Público. O problema é delicado, pois há um limite de disponibilidade orçamentária do fundo e, por outro lado, não é possível privar da população carente o direito ao acesso ao Judiciário. A solução mais óbvia é a aplicação crescente do montante do Fundo no fortalecimento da Defensoria Pública, aumentando gradualmente o número de defensores e propiciando-lhes uma estrutura institucional forte, de forma a efetivar a desejada paridade de armas nas relações processuais envolvendo necessitados. Conforme adverte Vítore Maximiano: “O modelo público é mais barato que o privado. O defensor custa menos porque tem compromisso exclusivo e pode assumir um maior número de ações”[7]. A Constituição foi promulgada em 1988 determinando a criação da Defensoria Pública em âmbito nacional e nos estados da federação sendo formada por defensores concursados (artigo 134, §1º). Após quase 18 de atraso, o estado de São Paulo finalmente constituiu tal órgão, sendo vergonhosamente um dos últimos entes da federação a tomar tal iniciativa. O quadro atual conta com 400 profissionais (longe das reais necessidades, estimadas em pelo menos 1600 defensores) que têm se desdobrado para realizar, com a melhor qualidade possível, um elevado número de atendimentos. Calcula-se que a verba destinada anualmente à OAB-SP seria suficiente para aumentar vultosamente a estrutura da instituição, o suficiente para atender as demandas de todo o estado. As atribuições da Defensoria vão muito além dos serviços de assistência judiciária que tem sido delegada com os advogados particulares, merecendo destaque a assistência jurídica integral, judicial e extrajudicial, e a legitimidade para a propositura das ações civis públicas visando para tutelar interesses difusos e coletivos. Apesar de o defensor público estar, em tese, em igualdade no tripé do Judiciário, seus vencimentos continuam muito aquém daqueles da magistratura e do Ministério Público[8]. Engrossam o coro a favor da posição adotada pela Defensoria Pública de São Paulo de manter os serviços de assistência judiciária sem o convênio, entre outros: Elio Gaspari, em artigo com o sugestivo título A OAB-SP quer preservar seu cartório”[9]; o editorial do jornal “O Estado de São Paulo”[10]; e o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, este último com as seguintes palavras: “Como advogado, rejeito a idéia de pertencer a uma entidade que se posta de maneira corporativa, muito mais preocupada em preservar os interesses de seus membros, ainda que respeitáveis, do que perseverar na sua grande missão de compromisso com a ordem pública”[11]. O destino do direito fundamental de assistência judiciária aos necessitados paulistas só pode estar nas mãos de uma instituição pública que tenha como foco prioritário o desempenho dessa missão. É preciso senso de responsabilidade social e vocação na prestação de serviços tão nobres. É inegável a necessidade, até a devida estruturação institucional da Defensoria Pública, do auxilio de advogados. Se a participação da OAB-SP nesse processo for inevitável, a entidade dos advogados deverá se conscientizar da imprescindível prevalência do interesse público, buscando, sempre sob a coordenação da Defensoria Pública, a racionalização do uso do dinheiro público, de modo a proporcionar o melhor atendimento possível à população. [1] Dados do endereço eletrônico da Defensoria Pública de São Paulo, consulta realizada em 01.08.2008: http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=2251&idModulo=5030. [2] “Necessitado”, nos termos do parágrafo único do artigo 2º, da Lei 1060/50 é “todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagara as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família”. [3] DIAS, José Carlos. “Em defesa da Defensoria Pública”. Folha de São Paulo, 03.08.2008, Tendências/Debates, p.03. [4] L.C 988/2006 – Art. 234 – “A Defensoria Pública do Estado manterá convênio com a Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, visando implementar, de forma suplementar, as atribuições institucionais do art. 5º desta Lei”. [5] Constituição do Estado de São Paulo – Art. 109 – “Para efeito do disposto no art. 3º desta Constituição, o Poder Executivo manterá quadros fixos de defensores públicos em cada juizado e, quando necessário, advogados designiados pela Ordem dos Advogados do Brasil – SP, mediante convênio”. [6] Defensoria e OAB vão retomar acordo. O Estado de São Paulo. Cidades/Metrópole. 31.07.2008. p. C7. [7] Defensoria e OAB vão retomar acordo. Opus cit. [8] Depiné Filho assevera que “No Orçamento de 2008, o Estado de São Paulo irá repassar à Defensoria Pública menos de 1% (um por cento) da verba prevista para o Tribunal de Justiça e menos de 3% (três por cento) daquela destinada ao Ministério Público. Em termos salariais, a diferença também é sentida, pois a remuneração inicial de um juiz ou a de um promotor é, aproximadamente, 200% (duzentos por cento) superior à de um defensor público, causando constante evasão de profissionais recém-selecionados e treinados em busca de vencimentos mais atraentes” (DEPINÉ FILHO, Davi Eduardo. Defensoria Pública: ainda não dá para celebrar. Folha de São Paulo, Tendências/Debates. 09.01.2008, p. 03). [9] O artigo de Gaspari é concluído com esta frase: “Tudo ficaria mais fácil se as funções fossem simplificadas: advogado é advogado, a Ordem é a Ordem e o serviço público é do Estado” (GASPARI, Elio. A OAB-SP quer preservar seu cartório. Folha de Sâo Paulo, cad. Brasil, 30.07.2008. p. A9). [10] Defensores Públicos. Editorial. O Estado de São Paulo. 30.07.08. p. A3. [11] DIAS, José Carlos. Opus cit.
Fonte: Consultor Jurídico
Fonte: Consultor Jurídico
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