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Encontra-se em pleno vigor desde a data de sua publicação a alteração sofrida pelo art. 306, do Código de Processo Penal, que modificou parte do procedimento que deverá ser adotado pela autoridade policial quando da efetivação da prisão em flagrante.
Pela nova norma:
“Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada.
§ 1o Dentro em 24h (vinte e quatro horas) depois da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.
§ 2o No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e o das testemunhas.” (NR)
O presente trabalho tem por escopo trazer ao debate – sem a pretensão de esgotar o tema – reflexões sobre a abordagem que o dispositivo legal imporá ao instituto da prisão em flagrante, ao procedimento do inquérito policial e à atuação da Defensoria Pública já na fase “inquisitorial” do processo penal.
Com efeito, a primeira modificação que salta aos olhos, extraída da leitura singela do artigo, está no fato de que, doravante, a autoridade policial encontra-se obrigada a comunicar o ato da prisão em flagrante de qualquer pessoa, dentro de vinte e quatro horas, ao juiz competente, à família do preso ou a pessoa por ele indicada, e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, à Defensoria Pública, através da remessa de cópia integral das peças que até então fizerem parte do procedimento.
A nova regra vem ao encontro da garantia efetiva de preceitos constitucionais caros ao cidadão, notadamente porque tem o iniludível propósito de assegurar ao flagrado, desde o momento da sua prisão em flagrante, sejam observados os princípios da presunção de inocência, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
O que, pela redação anterior, era uma mera faculdade da autoridade policial – comunicar a algum advogado (que não o indicado pela autuado) a efetivação de prisão em flagrante – passou a ser uma imposição pela redação atual. Ou seja, a partir de agora, a afronta ao direito de liberdade do indivíduo autuado em flagrante delito deve ser comunicada não só ao juiz, à família e ao advogado por ele indicado, mas também, na ausência deste, necessariamente à Defensoria Pública.
A pretensão da lei não possui cunho meramente formal – de emprestar validade ao ato da prisão em flagrante pela simples comunicação da sua ocorrência à Defesa -, mas, muito antes pelo contrário, é de espectro substancial, na medida em que está a exigir que a alteração sofrida pelo cidadão em seu status libertatis, primado do Estado de Democrático de Direito, que, em tese, tenha cometido crime, condicione-se, também, ao crivo da Defesa Pública, a quem cabe observar a legalidade do ato em todas suas nuances e particularidades, a par dos inarredáveis princípios e garantias fundamentais do cidadão insertos na Constituição da República.
Ao inserir a necessidade de comunicação do ato da prisão em flagrante também à Defensoria Pública, repisa-se, naquelas hipóteses em que o flagrado não indica advogado de sua confiança, a lei impõe ao mesmo Estado que restringe o exercício do princípio fundamental da liberdade, do direito de ir e vir do cidadão, observe o dever de confrontar a viabilidade de manutenção dessa liberdade sob a ótica da Defesa Pública, que deverá ser efetiva na prestação desse mister.
Contudo, quer nos parecer ser esse o ponto meramente mais visível que se extrai da interpretação da norma em comento.
Nas entrelinhas, as conseqüências da novel redação podem ser bem mais profundas, especialmente se tivermos por foco a garantia efetiva dos princípios constitucionais da presunção de inocência, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.
Cediço que o inquérito policial tem servido como mero procedimento de coleta de dados para embasar a denúncia elaborada pelo Ministério Público.
É notório ainda o fato de que o Código de Processo Penal vigente não prevê a possibilidade de exercício do direito de defesa do indiciado na fase do inquérito policial.
E, pasmem (!), a Constituição Federal, desde 1988, afirma: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV).
Mas, o que é o inquérito policial senão um procedimento administrativo encetado pelo Estado para apuração e levantamento de provas para embasar a denúncia contra o réu?
Todavia, o desrespeito a Constituição vem sendo diuturnamente praticado, no mais das vezes com o aval do próprio Poder Judiciário, que empresta validade em suas decisões à manutenção desse clamoroso desrespeito à Lei Maior, na medida em que não impõe a necessidade do efetivo respeito ao contraditório, ainda na fase “inquisitorial” do processo penal, por apego à práxis (ou à lei) flagrantemente afrontosa ao garantismo e ao Estado Democrático de Direito, como de resto o faz também pela manutenção, por exemplo, do princípio do in dúbio pro societate, na fase de pronúncia dos processos afetos ao Tribunal do Júri.
No mais, socorro-me da memória para volver aos bancos acadêmicos e remontar àquelas primeiras lições na cátedra de Introdução à Ciência do Direito, quando então nos foi ensinado que no ápice da pirâmide do ordenamento jurídico encontra-se a Constituição Federal, fonte primeira, inspiradora e balizadora do ordenamento legislativo, devendo a ela se conformar todas as demais leis complementares, leis ordinárias, decretos etc.
Será que, no particular, a praxis suplantou a razão? Por que, então, nos é particularmente difícil abrir a Constituição e dela extrair as garantias que são caras a toda a humanidade, pondo-as imediatamente em prática, fazendo com que caia por terra - vez por todas -, os ranços lamentavelmente ainda em nós enraizados, vertentes da prática do autoritarismo, do Estado como razão de ser, e não como forma de consecução do bem estar social de todo cidadão?
Ao meu sentir, a nova redação emprestada ao artigo 306, do Código de Processo Penal brasileiro, vem, em boa hora, reafirmar a necessidade e o dever do operador do Direito, de manuseá-lo com olhos voltados para a Constituição, especialmente no que tange aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo.
Nessa linha de pensamento concluo que, se a Lei nº 11.449/07 não impôs a observância efetiva do contraditório ainda na fase do inquérito policial, ao menos fincou alicerces para a reformulação de interpretações divorciadas dos princípios garantistas.
Primeiro, por que não é mais possível restringir a liberdade de pessoa – ainda que em flagrante delito – sem comunicar o ato ao advogado indicado pelo autuado, ou, na ausência de indicação deste, à Defensoria Pública, que, aqui, deverá zelar pela legalidade da medida que suprimiu o direito à liberdade do cidadão.
Segundo, por que, se antes era possível dar prosseguimento ao flagrante sem que, no mais das vezes, o advogado fosse comunicado da prisão, isso hoje já não mais ocorre na medida em que a lei tem evidente matiz profilático, desejando alijar do campo jurídico qualquer resquício de abuso de direito ou ilegalidade da conduta estatal supressora da liberdade do indivíduo.
Terceiro, por que seria demais simplório acreditar que a lei simplesmente determinou a comunicação do flagrante à Defensoria Pública – na hipótese de não haver sido indicado advogado particular – sem, em contrapartida, exigir desta qualquer exercício de seu múnus público.
Curial que, sob esse ponto de vista, a lei impõe a atuação da Defensoria Pública já na fase do inquérito policial, desde a decretação do flagrante, passando pelo conhecimento das provas angariadas, pela contraposição ao pedido do Ministério Público de prisão preventiva, enfim.
Salta aos olhos, portanto, que a Lei 11.449/07, acima de tudo, vem reafirmar a necessidade de serem observados os princípios constitucionais já mencionados, como forma de assegurar ao suspeito pelo cometimento do crime o exercício pleno do contraditório desde o mais remoto momento que tem contra si manejado o poder do Estado de suprimir sua liberdade e contra ele instaurar a ação penal.
Meu propósito aqui é, acima de tudo, chamar a atenção dos operadores do Direito para o fato de que nosso Código de Processo Penal necessita urgente (re)interpretação, à luz dos parâmetros constitucionais.
Nunca é demais lembrá-los que no processo penal brasileiro a fase inquisitorial não respeita as garantias constitucionais já mencionadas, justamente porque o nosso Código de Processo Penal, que é de 1941, inspirou-se no Código Rocco (da Itália de 1930), de matiz sabidamente fascista, o qual excluiu a presença do defensor mesmo na fase instrutória do processo.
Nesse passo, mister concluir ser abissal a dissonância entre os modelos que inspiraram a elaboração do Código de Processo Penal e a vigente Constituição Federal: o primeiro, de modelo fascista, autoritário, totalitarista; a segunda, de cunho democrático, garantista e pluralista.
Daí a razão pela qual estamos cada vez mais convictos de que é necessário fazer uma releitura das normas insertas no Código de Processo Penal brasileiro, sintonizando-o com a nova ordem democrática inaugurada a partir de 1988.
Por tal motivo, cremos, a Lei nº 11.449/07 faz suplantar de vez o entendimento de que, na fase do inquérito policial, é dispensável o contraditório entre as partes.
A norma em comento veio ainda reafirmar a condição da Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
A instituição, nada obstante sua essencialidade à função jurisdicional do Estado, afirmada no art. 134 da Constituição da República, mereceu especial destaque na Emenda Constitucional nº 45/04, a chamada Reforma do Judiciário, oportunidade em que às Defensorias Públicas estaduais foram asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.
Importa ressaltar que a Defensoria Pública goza hoje do mesmo status constitucional do Ministério Público: instituições essenciais à função da Justiça, com autonomia orçamentária e administrativa próprias.
Também por isso quer nos parecer que a Lei nº 11.449/07 impõe a necessidade de atuação da Defensoria Pública desde o flagrante – ressalvados os casos de indicação de advogado particular –, como forma de reafirmar a essencialidade da instituição à função jurisdicional, mas também porque, o flagrado, uma vez carente de qualquer assistência defensiva, via-se - com perdão à redundância - em flagrante desvantagem frente à ação do Estado, consubstanciada pela atuação da polícia e do próprio Ministério Público.
Este, não raras vezes, a propósito de atuar na fase inquisitorial como fiscal da lei, requer ao Magistrado a efetivação de inúmeras diligências junto à autoridade policial, as quais são rotineiramente deferidas. Todavia, logo ali adiante o fiscal da lei transmuta-se em parte, restando, a serviço da acusação, o aparato estatal, e com ele a coleta inúmeras provas, em detrimento da defesa que, como já dito, não tem direito ao exercício pleno do contraditório nessa fase processual.
A modificação verificada impõe, portanto, que, em sendo o Ministério Público e Defensoria Pública funções essenciais à Justiça, e estando elas no mesmo patamar constitucional, o aparato estatal (vale dizer, a autoridade policial) não distinga entre a produção de prova para a acusação ou para a defesa, devendo, isto sim, produzir prova para o processo penal. E a função do Juiz, nesse particular, assegurando os princípios da presunção de inocência, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal torna-se sabidamente insuperável e determinante nesse sentido.
Contrapondo à igualdade formal havida entre as instituições nos precisos termos constitucionais, verifica-se o abissal distanciamento material, substancial, entre ambas.
A primeira delas está no fato de que o Ministério Público de há muito obteve autonomia orçamentária e administrativa, com isso qualificando e quantificando seu quadro operacional.
Noutro quadrante, somente a partir da EC nº 45/04 foi que as Defensorias Públicas estaduais passaram a dispor de idêntica autonomia.
Sabe-se, contudo, que, na prática, o distanciamento entre essas instituições é desproporcional à importância que a Carta Magda lhes confere.
Não se olvide, contudo, que o múnus público afeto às Defensorias estaduais por força de imperativo constitucional de orientação e defesa dos necessitados, em todos os graus, impõe-lhe abraçar com afinco e entusiasmo a oportunidade de lutar incansavelmente pelo respeito aos princípios e garantias constitucionais antes referidos, em especial o do contraditório já na fase “inquisitorial” do processo penal, pois a efetivação das garantias perseguidas somente tem a contribuir com o desenvolvimento da sociedade, a evolução do Direito e a afirmação da própria instituição, quer perante a sociedade, quer perante a comunidade jurídica.
Malgrado a distância substancial havida entre acusação e defesa, a novel norma legal está a impor, em última análise, ao próprio Estado de Direito, que os antagonismos do processo penal (é dizer, a dialética entre acusação e defesa) sejam definitivamente extirpados de nosso ordenamento jurídico, assegurando a todos, desde o primórdio da ação penal (ou seja, do inquérito policial), o contraditório e a ampla defesa, com a garantia dos meios a eles inerentes.
Ao ocaso desta breve incursão sobre o dispositivo abordado, impõe-se reafirmar nossa convicção de que a Lei n° 11.449/07 outra coisa não fez senão acenar pela aplicação imediata do contraditório na fase do inquérito policial, especialmente em relação àqueles instaurados pelo auto de prisão em flagrante delito (e a observância dele nos demais processos será decorrência lógica); reafirmou a importância do respeito ao princípio da liberdade do indivíduo como corolário do Estado Democrático de Direito, e, finalmente, impôs às Defensorias Públicas estaduais a obrigação de assistir aos necessitados (entre eles, sem dúvida, os acusados em geral), oportunizando-lhes o embate linear entre acusação e defesa.
Pela nova norma:
“Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada.
§ 1o Dentro em 24h (vinte e quatro horas) depois da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.
§ 2o No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e o das testemunhas.” (NR)
O presente trabalho tem por escopo trazer ao debate – sem a pretensão de esgotar o tema – reflexões sobre a abordagem que o dispositivo legal imporá ao instituto da prisão em flagrante, ao procedimento do inquérito policial e à atuação da Defensoria Pública já na fase “inquisitorial” do processo penal.
Com efeito, a primeira modificação que salta aos olhos, extraída da leitura singela do artigo, está no fato de que, doravante, a autoridade policial encontra-se obrigada a comunicar o ato da prisão em flagrante de qualquer pessoa, dentro de vinte e quatro horas, ao juiz competente, à família do preso ou a pessoa por ele indicada, e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, à Defensoria Pública, através da remessa de cópia integral das peças que até então fizerem parte do procedimento.
A nova regra vem ao encontro da garantia efetiva de preceitos constitucionais caros ao cidadão, notadamente porque tem o iniludível propósito de assegurar ao flagrado, desde o momento da sua prisão em flagrante, sejam observados os princípios da presunção de inocência, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
O que, pela redação anterior, era uma mera faculdade da autoridade policial – comunicar a algum advogado (que não o indicado pela autuado) a efetivação de prisão em flagrante – passou a ser uma imposição pela redação atual. Ou seja, a partir de agora, a afronta ao direito de liberdade do indivíduo autuado em flagrante delito deve ser comunicada não só ao juiz, à família e ao advogado por ele indicado, mas também, na ausência deste, necessariamente à Defensoria Pública.
A pretensão da lei não possui cunho meramente formal – de emprestar validade ao ato da prisão em flagrante pela simples comunicação da sua ocorrência à Defesa -, mas, muito antes pelo contrário, é de espectro substancial, na medida em que está a exigir que a alteração sofrida pelo cidadão em seu status libertatis, primado do Estado de Democrático de Direito, que, em tese, tenha cometido crime, condicione-se, também, ao crivo da Defesa Pública, a quem cabe observar a legalidade do ato em todas suas nuances e particularidades, a par dos inarredáveis princípios e garantias fundamentais do cidadão insertos na Constituição da República.
Ao inserir a necessidade de comunicação do ato da prisão em flagrante também à Defensoria Pública, repisa-se, naquelas hipóteses em que o flagrado não indica advogado de sua confiança, a lei impõe ao mesmo Estado que restringe o exercício do princípio fundamental da liberdade, do direito de ir e vir do cidadão, observe o dever de confrontar a viabilidade de manutenção dessa liberdade sob a ótica da Defesa Pública, que deverá ser efetiva na prestação desse mister.
Contudo, quer nos parecer ser esse o ponto meramente mais visível que se extrai da interpretação da norma em comento.
Nas entrelinhas, as conseqüências da novel redação podem ser bem mais profundas, especialmente se tivermos por foco a garantia efetiva dos princípios constitucionais da presunção de inocência, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.
Cediço que o inquérito policial tem servido como mero procedimento de coleta de dados para embasar a denúncia elaborada pelo Ministério Público.
É notório ainda o fato de que o Código de Processo Penal vigente não prevê a possibilidade de exercício do direito de defesa do indiciado na fase do inquérito policial.
E, pasmem (!), a Constituição Federal, desde 1988, afirma: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV).
Mas, o que é o inquérito policial senão um procedimento administrativo encetado pelo Estado para apuração e levantamento de provas para embasar a denúncia contra o réu?
Todavia, o desrespeito a Constituição vem sendo diuturnamente praticado, no mais das vezes com o aval do próprio Poder Judiciário, que empresta validade em suas decisões à manutenção desse clamoroso desrespeito à Lei Maior, na medida em que não impõe a necessidade do efetivo respeito ao contraditório, ainda na fase “inquisitorial” do processo penal, por apego à práxis (ou à lei) flagrantemente afrontosa ao garantismo e ao Estado Democrático de Direito, como de resto o faz também pela manutenção, por exemplo, do princípio do in dúbio pro societate, na fase de pronúncia dos processos afetos ao Tribunal do Júri.
No mais, socorro-me da memória para volver aos bancos acadêmicos e remontar àquelas primeiras lições na cátedra de Introdução à Ciência do Direito, quando então nos foi ensinado que no ápice da pirâmide do ordenamento jurídico encontra-se a Constituição Federal, fonte primeira, inspiradora e balizadora do ordenamento legislativo, devendo a ela se conformar todas as demais leis complementares, leis ordinárias, decretos etc.
Será que, no particular, a praxis suplantou a razão? Por que, então, nos é particularmente difícil abrir a Constituição e dela extrair as garantias que são caras a toda a humanidade, pondo-as imediatamente em prática, fazendo com que caia por terra - vez por todas -, os ranços lamentavelmente ainda em nós enraizados, vertentes da prática do autoritarismo, do Estado como razão de ser, e não como forma de consecução do bem estar social de todo cidadão?
Ao meu sentir, a nova redação emprestada ao artigo 306, do Código de Processo Penal brasileiro, vem, em boa hora, reafirmar a necessidade e o dever do operador do Direito, de manuseá-lo com olhos voltados para a Constituição, especialmente no que tange aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo.
Nessa linha de pensamento concluo que, se a Lei nº 11.449/07 não impôs a observância efetiva do contraditório ainda na fase do inquérito policial, ao menos fincou alicerces para a reformulação de interpretações divorciadas dos princípios garantistas.
Primeiro, por que não é mais possível restringir a liberdade de pessoa – ainda que em flagrante delito – sem comunicar o ato ao advogado indicado pelo autuado, ou, na ausência de indicação deste, à Defensoria Pública, que, aqui, deverá zelar pela legalidade da medida que suprimiu o direito à liberdade do cidadão.
Segundo, por que, se antes era possível dar prosseguimento ao flagrante sem que, no mais das vezes, o advogado fosse comunicado da prisão, isso hoje já não mais ocorre na medida em que a lei tem evidente matiz profilático, desejando alijar do campo jurídico qualquer resquício de abuso de direito ou ilegalidade da conduta estatal supressora da liberdade do indivíduo.
Terceiro, por que seria demais simplório acreditar que a lei simplesmente determinou a comunicação do flagrante à Defensoria Pública – na hipótese de não haver sido indicado advogado particular – sem, em contrapartida, exigir desta qualquer exercício de seu múnus público.
Curial que, sob esse ponto de vista, a lei impõe a atuação da Defensoria Pública já na fase do inquérito policial, desde a decretação do flagrante, passando pelo conhecimento das provas angariadas, pela contraposição ao pedido do Ministério Público de prisão preventiva, enfim.
Salta aos olhos, portanto, que a Lei 11.449/07, acima de tudo, vem reafirmar a necessidade de serem observados os princípios constitucionais já mencionados, como forma de assegurar ao suspeito pelo cometimento do crime o exercício pleno do contraditório desde o mais remoto momento que tem contra si manejado o poder do Estado de suprimir sua liberdade e contra ele instaurar a ação penal.
Meu propósito aqui é, acima de tudo, chamar a atenção dos operadores do Direito para o fato de que nosso Código de Processo Penal necessita urgente (re)interpretação, à luz dos parâmetros constitucionais.
Nunca é demais lembrá-los que no processo penal brasileiro a fase inquisitorial não respeita as garantias constitucionais já mencionadas, justamente porque o nosso Código de Processo Penal, que é de 1941, inspirou-se no Código Rocco (da Itália de 1930), de matiz sabidamente fascista, o qual excluiu a presença do defensor mesmo na fase instrutória do processo.
Nesse passo, mister concluir ser abissal a dissonância entre os modelos que inspiraram a elaboração do Código de Processo Penal e a vigente Constituição Federal: o primeiro, de modelo fascista, autoritário, totalitarista; a segunda, de cunho democrático, garantista e pluralista.
Daí a razão pela qual estamos cada vez mais convictos de que é necessário fazer uma releitura das normas insertas no Código de Processo Penal brasileiro, sintonizando-o com a nova ordem democrática inaugurada a partir de 1988.
Por tal motivo, cremos, a Lei nº 11.449/07 faz suplantar de vez o entendimento de que, na fase do inquérito policial, é dispensável o contraditório entre as partes.
A norma em comento veio ainda reafirmar a condição da Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
A instituição, nada obstante sua essencialidade à função jurisdicional do Estado, afirmada no art. 134 da Constituição da República, mereceu especial destaque na Emenda Constitucional nº 45/04, a chamada Reforma do Judiciário, oportunidade em que às Defensorias Públicas estaduais foram asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.
Importa ressaltar que a Defensoria Pública goza hoje do mesmo status constitucional do Ministério Público: instituições essenciais à função da Justiça, com autonomia orçamentária e administrativa próprias.
Também por isso quer nos parecer que a Lei nº 11.449/07 impõe a necessidade de atuação da Defensoria Pública desde o flagrante – ressalvados os casos de indicação de advogado particular –, como forma de reafirmar a essencialidade da instituição à função jurisdicional, mas também porque, o flagrado, uma vez carente de qualquer assistência defensiva, via-se - com perdão à redundância - em flagrante desvantagem frente à ação do Estado, consubstanciada pela atuação da polícia e do próprio Ministério Público.
Este, não raras vezes, a propósito de atuar na fase inquisitorial como fiscal da lei, requer ao Magistrado a efetivação de inúmeras diligências junto à autoridade policial, as quais são rotineiramente deferidas. Todavia, logo ali adiante o fiscal da lei transmuta-se em parte, restando, a serviço da acusação, o aparato estatal, e com ele a coleta inúmeras provas, em detrimento da defesa que, como já dito, não tem direito ao exercício pleno do contraditório nessa fase processual.
A modificação verificada impõe, portanto, que, em sendo o Ministério Público e Defensoria Pública funções essenciais à Justiça, e estando elas no mesmo patamar constitucional, o aparato estatal (vale dizer, a autoridade policial) não distinga entre a produção de prova para a acusação ou para a defesa, devendo, isto sim, produzir prova para o processo penal. E a função do Juiz, nesse particular, assegurando os princípios da presunção de inocência, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal torna-se sabidamente insuperável e determinante nesse sentido.
Contrapondo à igualdade formal havida entre as instituições nos precisos termos constitucionais, verifica-se o abissal distanciamento material, substancial, entre ambas.
A primeira delas está no fato de que o Ministério Público de há muito obteve autonomia orçamentária e administrativa, com isso qualificando e quantificando seu quadro operacional.
Noutro quadrante, somente a partir da EC nº 45/04 foi que as Defensorias Públicas estaduais passaram a dispor de idêntica autonomia.
Sabe-se, contudo, que, na prática, o distanciamento entre essas instituições é desproporcional à importância que a Carta Magda lhes confere.
Não se olvide, contudo, que o múnus público afeto às Defensorias estaduais por força de imperativo constitucional de orientação e defesa dos necessitados, em todos os graus, impõe-lhe abraçar com afinco e entusiasmo a oportunidade de lutar incansavelmente pelo respeito aos princípios e garantias constitucionais antes referidos, em especial o do contraditório já na fase “inquisitorial” do processo penal, pois a efetivação das garantias perseguidas somente tem a contribuir com o desenvolvimento da sociedade, a evolução do Direito e a afirmação da própria instituição, quer perante a sociedade, quer perante a comunidade jurídica.
Malgrado a distância substancial havida entre acusação e defesa, a novel norma legal está a impor, em última análise, ao próprio Estado de Direito, que os antagonismos do processo penal (é dizer, a dialética entre acusação e defesa) sejam definitivamente extirpados de nosso ordenamento jurídico, assegurando a todos, desde o primórdio da ação penal (ou seja, do inquérito policial), o contraditório e a ampla defesa, com a garantia dos meios a eles inerentes.
Ao ocaso desta breve incursão sobre o dispositivo abordado, impõe-se reafirmar nossa convicção de que a Lei n° 11.449/07 outra coisa não fez senão acenar pela aplicação imediata do contraditório na fase do inquérito policial, especialmente em relação àqueles instaurados pelo auto de prisão em flagrante delito (e a observância dele nos demais processos será decorrência lógica); reafirmou a importância do respeito ao princípio da liberdade do indivíduo como corolário do Estado Democrático de Direito, e, finalmente, impôs às Defensorias Públicas estaduais a obrigação de assistir aos necessitados (entre eles, sem dúvida, os acusados em geral), oportunizando-lhes o embate linear entre acusação e defesa.
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