quinta-feira, 24 de abril de 2008

Vulgarização das escutas exibe o descaso judicial

06:47 |

Em recente sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito que examina normas e procedimentos de interceptação telefônica, divulgou-se um dado estarrecedor: houve 409 mil autorizações judiciais de captação e gravação de conversas telefônicas, só no ano passado.
É importante ressaltar que tal informação tornou-se conhecida do público em virtude de esclarecimentos prestados pelas empresas de telefonia à CPI. No âmbito do Judiciário, ao que parece, inexistia qualquer estatística, ou dado oficial, que permitisse a aferição da quantidade de interceptações telefônicas realizadas no país.
O número chama atenção na medida em que a regra constitucional impõe o sigilo das comunicações telefônicas (artigo 5º, XII, da Constituição Federal), constituindo a escuta a exceção. Exceção que só poderia ocorrer se presentes os requisitos legais (artigo 2º, da Lei 9.296/96) e mediante decisão judicial motivada, na hipótese única de destinar-se a prova à persecução penal.
Ora, a vulgarização das escutas telefônicas exibe o descaso judicial quanto ao valor jurídico da intimidade (artigo 5º, IV e X, da CF), bem como o desprezo à legalidade estrita. Os juízes preferiram ceder ao pragmatismo, às pretensas vantagens das quebras de sigilo à investigação criminal, acatando o falso argumento de que determinadas infrações penais somente se provariam por meio do acesso às comunicações telefônicas.
Não parece crível a ocorrência de tantos crimes, apenados com reclusão, que justificassem a medida (artigo 2º, III, da Lei 9.296/96). Muito menos se mostra razoável imaginar que inexistiriam, em todos esses casos, outros meios aptos à produção da prova (artigo 2º, II, da Lei 9.296/96). E, com certeza, a maioria dos fatos investigados não apresentava indícios de autoria, ou participação (artigo 2º, I, da Lei 9.296/96 c.c. artigo 29, do Código Penal).
O descrédito quanto à eficácia da Lei 9.296/96 estende-se ao papel do Ministério Público, o qual tinha poder-dever de acompanhar as interceptações telefônicas, para garantir a regularidade dos procedimentos e controlar a atividade da polícia judiciária (artigo 5º, da Lei 9.296/96 c.c. artigo 129, VII, da CF).
O problema da banalização da violação ao sigilo telefônico torna-se mais grave, quanto se observa o tempo despendido em cada interceptação. Se tomado o exemplo das operações policiais, sob a responsabilidade do Departamento de Polícia Federal, pode-se constatar que algumas interceptações telefônicas perduram por mais de ano.
Este aspecto deve ser examinado, com cuidado, pela CPI e questionado pelos profissionais do Direito. Afinal, também se faz letra morta da disposição legal que determina o limite de 15 dias para a diligência, renováveis “por igual tempo uma vez comprovado a indispensabilidade do meio de prova” (artigo 5º, da Lei 9.296/96).
Longos períodos de escuta telefônica trazem várias conseqüências indesejáveis. Por óbvio, a extensão da interceptação acarreta maior invasão da intimidade do investigado e daqueles que com ele se comunicam. Por exemplo, cônjuge, familiares, amigos do interceptado ficam expostos à bisbilhotice estatal, sem terem qualquer relação com a persecução penal.
A demora implica, também, embaraçar a defesa técnica, a qual tem de ouvir horas de conversas gravadas, ou ler páginas e páginas com as transcrições, em tempo exíguo, para tentar entender onde foram pinçados os trechos de conversa, utilizados na imputação
Por fim, para o Estado, sobram prejuízos advindos das escutas perenes. Existe o custo inerente ao manuseio e armazenamento do vasto material da interceptação. Há o gasto com pessoal, de policiais a peritos, cujo trabalho aumenta na proporção da duração da escuta telefônica.
Mas, a principal causa de prejuízo advém da demora na atuação do Estado, cujos agentes ficam meses assistindo o iter criminis, sem interrompê-lo, para amealhar mais provas, sem perceber que colaboram com a ampliação do dano. Basta pensar nas investigações de crime contra ordem tributária, nas quais se deixaram repetir negócios, considerados fraudulentos, ao invés de autuar o contribuinte, assim que evidenciado o primeiro ilícito
Tais problemas das escutas telefônicas mostram, outra vez, a “burocultura” na atividade da Justiça Criminal. Os requerimentos de renovação da interceptação são feitos pela polícia judiciária, sem a indicação do motivo e do fim almejado. Promotores públicos e juízes aquiescem com os pedidos, sem conhecer o conteúdo da escuta, nem o andamento da investigação criminal. Decide-se a renovação sob a pressão da suposta necessidade e urgência da medida, ou porque comovidos com o discurso da gravidade do crime, ou do tamanho da organização criminosa.
Na verdade, deve-se retirar a discricionariedade judicial quanto ao tempo de realização da interceptação telefônica, impondo-se na lei um prazo improrrogável de 30 a 60 dias. Se em tal período for impossível demonstrar a ocorrência material do crime e quem se apresenta o autor ou partícipe, melhor buscar outro modo de investigar, mais eficaz, mais condizente com o Estado Democrático de Direito.
Por Antonio Sérgio de Moraes Pitombo: advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito na USP.

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